Manuscrito Encontrado numa Garrafa

Manuscrito Encontrado numa Garrafa

4065 palavras [± 20 minutos de leitura]
Qui n'a plus qu'un moment à vivre
N'a plus rien à dissimuler.
Quinault, Atys
Quem tem apenas um momento mais de vida
Nada mais tem a dissimular.

Da minha terra e da minha família pouco tenho a dizer. Os maus costumes e o acumular dos anos afastaram-me da primeira e alhearam-me da segunda. O meu patrimônio proporcionou-me uma educação pouco comum e uma disposição de espírito contemplativa permitiu-me ordenar metodicamente as aquisições diligentemente reunidas pelo estudo precoce. O estudo dos filósofos alemães fez particularmente as minhas delícias: não por qualquer mal-avisada admiração pela sua eloqüente loucura, mas antes pela facilidade com que os meus hábitos de raciocínio rigoroso me facultavam a detecção dos seus erros. Fui muitas vezes admoestado pela aridez do meu gênio; imputavam-me, como se de um crime se tratasse, falta de imaginação, e o pirronismo das minhas opiniões sempre me tornou notado. De fato, receio bem que uma forte atração pela filosofia física me tenha impregnado o espírito de um defeito muito comum nesta época: refiro-me ao hábito de reportar os acontecimentos, mesmo os menos susceptíveis de o serem, aos princípios de tal ciência. Em suma, ninguém seria menos dado que eu a deixar-se desviar das estritas fronteiras da verdade pelos ignes fatui da superstição. Achei que se justificaria esta introdução, sob pena de o incrível relato que se segue ser tomado mais pelo delírio de uma imaginação desenfreada do que pela experiência positiva de um espírito para o qual os devaneios da fantasia sempre foram letra morta e coisa de nulo valor.

Após muitos anos passados em deslocações pelo estrangeiro, larguei no ano de 18... do porto de Batávia, na rica e populosa ilha de Java, em viagem ao arquipélago de Sunda. Embarquei como passageiro, sem outro estímulo que não fosse uma qualquer nervosa irrequietude que me obcecava como espírito maléfico.

O nosso navio era um belo veleiro de umas quatrocentas toneladas, construído de teca do Malabar em Bombaim. Levava um carregamento de algodão em rama e azeite, proveniente das ilhas Lacadivas. Transportávamos ainda fibra de coco, açúcar mascavado, manteiga, cocos e algumas caixas de ópio. A estiva tinha sido feita de modo descuidado, pelo que o navio ia adornado.

Largamos sob um tênue bafejo de vento e mantivemo-nos durante vários dias ao longo da costa oriental de Java, sem mais incidentes que iludissem a monotonia da nossa singradura para além do encontro ocasional com alguns grabs (1) do arquipélago a que nos mantínhamos confinados.

Uma tarde, debruçado à balaustrada da popa, observei uma nuvem isolada muito estranha, a noroeste. Era singular, quer pela cor, quer por ser a primeira com que deparávamos desde a largada de Batávia. Contemplei-a atentamente até ao sol-pôr, altura em que alastrou repentinamente para leste e oeste, cercando o horizonte de uma estreita faixa de vapor e assemelhando-se a uma baixa linha de costa. Não tardou que a minha atenção fosse subseqüentemente atraída pelo aspecto vermelho-escuro da Lua e pelo invulgar estado do mar. Este sofreu uma rápida alteração e a água parecia mais transparente do que o habitual. Embora conseguisse ver distintamente o fundo, ao lançar a sonda verifiquei que a profundidade local era de vinte braças. O ar tornara-se agora intoleravelmente quente e estava carregado de exalações espirais semelhantes às que se desprendem do ferro quando aquecido. Com o tombar da noite, o vento caiu totalmente, sendo impossível conceber calmaria mais completa. A chama da lanterna sobre a popa ardia sem o menor movimento perceptível, e um cabelo comprido, seguro entre o polegar e o indicador, pendia sem que pudesse observar-se a mais pequena ondulação. No entanto, como o comandante dissesse que não se apercebia de qualquer indício de perigo, e uma vez que estávamos a abater totalmente para terra, mandou ferrar as velas e fundear. Não se passou a regime de quartos e a tripulação, constituída principalmente por malaios, veio deitar-se deliberadamente no convés. Desci aos alojamentos – não sem um forte pressentimento de desastre. De facto, todas as aparências me levavam a suspeitar da aproximação do simum. Dei parte dos meus temores ao comandante, mas este não prestou a menor atenção às minhas palavras e deixou-me sem ao menos se dignar de responder. Todavia, a inquietação não me deixou dormir e, perto da meia-noite, subi ao convés. Ao colocar o pé no último degrau da escada, fui surpreendido por um forte ruído sussurrante como produzido por rápida rotação de moinho e, antes que pudesse averiguar o seu significado, apercebi-me de que o navio estremecia na direção do seu centro. No instante imediato, um cachão de espuma fez-nos adornar subitamente e, passando sobre nós, varreu todo o convés de popa a proa.

A extrema violência do choque veio, em grande parte, a ser a salvação do navio. Embora completamente inundado, quando os mastros foram pela borda fora, ergueu-se pesadamente das águas um minuto depois e, vacilando um instante sob a intensa pressão da tempestade, endireitou-se finalmente.

Não sei dizer por que milagre escapei à destruição. Atordoado pelo embate de água, dei por mim, uma vez refeito, entalado entre o cadaste e o leme. com grande dificuldade, pus-me de pé e, olhando confusamente ao redor, fui inicialmente assaltado pela idéia de que estivéssemos no meio de recifes, de tal modo terrível e inimaginável era o turbilhão do oceano alteroso e espumejante em que estávamos mergulhados. Passados algum tempo ouvi a voz de um velho sueco, que embarcara conosco no momento em que largávamos do porto. Gritei-lhe com todas as forças e ele acabou por dirigir-se, a cambalear, para a popa. Depressa descobrimos que éramos os únicos sobreviventes do acidente. Todos os que estavam no convés, exceto nós, tinham sido varridos pela borda fora; o comandante e os oficiais deviam ter perecido durante o sono, visto que os camarotes se encontravam totalmente alagados. Sem auxílio, pouco poderíamos contar fazer pela segurança do navio e os nossos esforços foram de princípio paralisados pela perspectiva momentânea de irmos a pique. Era evidente que a amarra se quebrara como se fosse uma guita ao primeiro sopro do furacão, pois de contrário teríamos sido instantaneamente esmagados. Corríamos com o furacão a uma velocidade assustadora e as águas abriam brechas visíveis à nossa frente. A estrutura da popa tinha sofrido enormes danos e, praticamente sob todos os aspectos, fôramos objeto de consideráveis avarias; mas para nossa extrema alegria, descobrimos que as bombas não tinham ficado obstruídas e que o lastro não sofrera grande deslocação. A maior fúria da tempestade tinha já amainado e a violência do vento não parecia oferecer grande perigo: contudo, ansiávamos, consternados, por que ele cessasse completamente, pois estávamos em crer que, com tais estragos, inevitavelmente pereceríamos na ondulação tremenda que sobreviria. Contudo, esta justíssima apreensão não parecia de modo algum em vias de concretizar-se. Durante cinco dias e cinco noites – no decurso dos quais tivemos por único alimento uma pequena porção de açúcar mascavado, obtido com grande dificuldade no castelo da proa – o calhambeque correu a uma velocidade que desafiava qualquer cálculo, impulsionado por rajadas de vento que se sucediam rapidamente, as quais, sem contudo se compararem à violência inicial do simum, eram ainda mais terríveis do que qualquer tempestade que até então eu tivesse presenciado. O nosso rumo durante os primeiros quatro dias foi, com insignificantes variações, sueste quarta a sul, e deveríamos ir parar às costas da Nova Holanda. No quinto dia começou a fazer-se sentir um frio extremo, embora o vento tivesse rondado mais uma quarta para norte. O Sol despontou com um fulgor amarelo doentio e ergueu-se apenas alguns graus acima do horizonte – sem emitir uma luz definida. Não havia nuvens à vista, mas o vento continuava a refrescar e soprava com uma violência irregular e instável. Cerca do meio-dia, tanto quanto nos era possível estimar, a nossa atenção foi novamente desperta pela aparência do Sol. Não emitia luz propriamente dita, mas antes um clarão mortiço e soturno sem reverberação, como se todos os seus raios estivessem polarizados. Imediatamente antes de mergulhar no mar túrgido, a sua chama central extinguiu-se de súbito, como que pressurosamente apagada por algum inexplicável poder. Era apenas um arco esbatido e quase prateado ao precipitar-se no oceano insondável.

Aguardamos em vão a chegada do sexto dia: esse dia para mim não chegou: para o sueco, não existiu sequer. De então em diante, vimo-nos amortalhados numa escuridão de breu, de tal modo que não conseguiríamos ver um objeto a vinte passo do navio. A noite eterna começou a envolver-nos, nem sequer mitigada pela fosforescência das águas a que nos habituáramos nos trópicos. Observamos igualmente que, embora a tempestade continuasse a bramir com inquebrantável violência, já não conseguia descortinar-se o habitual aparecimento de rebentação ou espuma, que até então nos havia acompanhado. À nossa volta tudo era horror, trevas profundas e um negro e abrasador deserto de ébano. Um terror supersticioso começou a invadir progressivamente o cérebro do velho sueco, e meu próprio espírito estava mergulhado em profundo espanto. Abandonáramos todos os cuidados do navio, mais do que inúteis, e, amarrando-nos o melhor que pudemos ao mastro da mezena, observávamos amargamente a imensidão do oceano. Não tínhamos maneira de calcular o tempo nem fazíamos a menor idéia de qual a nossa posição. Contudo, estávamos perfeitamente cientes de que havíamos navegado mais para sul do que qualquer outro mareante e experimentamos grande admiração por se não nos depararem os habituais obstáculos de gelo. Entrementes, cada instante ameaçava ser o último da nossa vida: não havia vaga alterosa que não se precipitasse para nos esmagar. A ondulação ultrapassava tudo o que eu imaginara possível e o fato de o mar não nos ter sepultado instantaneamente constituía um milagre. O meu companheiro referiu-se ao pouco peso da carga que transportávamos e recordou-me as excelentes qualidades do navio; fosse como fosse, eu não conseguia deixar de sentir o extremo desespero da própria esperança e preparei-me melancolicamente para a morte que acreditava nada poder adiar por mais que uma hora, visto que, a cada nó que o navio avançava, a agitação das prodigiosas águas negras se tornava cada vez mais lugubremente aterradora. Por vezes, ao elevarmo-nos mais ainda que um albatroz, perdíamos a respiração; outras ficávamos atordoados com a velocidade com que o navio se afundava em qualquer inferno aquático, onde o ar estagnava e nenhum som perturbava o sono do kraken (2).

Encontrávamo-nos no fundo de um desses abismos quando um súbito grito do meu companheiro rompeu temerosamente na noite:

– Olhe! Olhe! – gritou angustiadamente aos meus ouvidos. – Deus todo-poderoso! Olhe! Olhe!

Enquanto ele falava, apercebi-me do clarão mortiço e sombrio de uma luz vermelha que se escoava de um e outro lado do abismo em que estávamos mergulhados, e lançava um brilho incerto sobre o nosso convés. Erguendo a vista, observei um espetáculo que me fez gelar o sangue nas veias. A uma altura descomunal acima de nós, e precisamente na orla precipício das águas, pairava um gigantesco navio de umas quatro mil toneladas. Apesar de alcandorado na crista de uma vaga que tinha mais de cem vezes a sua altura, as suas dimensões aparentes ainda assim excediam as de qualquer navio de linha ou da Companhia das Índias. O seu casco enorme era de um negro profundo, nem sequer atenuado por qualquer dos habituais ornatos que os navios ostentam. Uma fileira única de peças de artilharia de bronze emergia das escotilhas abertas e as suas superfícies polidas refletiam os clarões das inúmeras lanternas de combate que balouçavam de um lado para outro na mastreação. Todavia, o que fundamentalmente nos encheu de horror e espanto foi que ele navegava a todo o pano, a despeito daquele mar sobrenatural e do incontrolável furacão. Quando o avistamos a primeira vez, apenas se lhe via a proa, ao erguer-se lentamente do sombrio e horrível fosso que ia deixando para trás. Por um instante de intenso terror, deteve-se sobre o cume vertiginoso, como que imerso na contemplação da sua própria magnificência, após o que estremeceu, vacilou e... iniciou a queda.

Nesse instante, não sei que súbita serenidade me invadiu o espírito. Avançando a cambalear para a popa o mais que me foi possível, aguardei sem receio a catástrofe que certamente nos iria esmagar. O nosso próprio navio começava a abandonar a luta e a mergulhar a proa nas águas. O choque daquela mole que se abatia atingiu-o, por conseguinte, naquele porção da estrutura que estava já sob a água, e o resultado inevitável foi precipitar-me, com irresistível violência, de encontro ao cordame do intruso.

Quando caí, o navio aproou ao vento e virou de bordo; foi à confusão que se seguiu que atribuí o fato de ter passado despercebido aos olhos da tripulação. Não encontrei dificuldade em abrir caminho sem ser detectado até à escotilha principal, que estava parcialmente aberta, e pouco tardou que se me deparasse uma ocasião propícia para me ocultar no porão. Não sei exatamente por que razão o fiz. Talvez uma indefinida sensação de temor, que desde a primeira visão dos tripulantes do navio se me apoderara do espírito, estivesse na origem desta tentativa de buscar esconderijo. Não me sentia inclinado a confiar numa raça de gente que havia revelado, perante o olhar apressado que lhes deitara, tantos motivos de vaga estranheza, dúvida e apreensão. Julguei, pois, acertado arranjar um lugar no porão onde pudesse ocultar-me. Fi-lo deslocando uma porção de pranchas, de modo a obter um abrigo adequado entre o cavername enorme do navio.

Mal terminara ainda a tarefa, quando o som de passos no porão me obrigou a utilizá-lo. Um homem de andar débil e incerto passou junto ao meu esconderijo. Não pude ver-lhe o rosto, mas tive ocasião de observar-lhe o aspecto geral. Apresentava indícios de idade avançada e de doença. Os joelhos vacilavam ao peso dos anos e todo o corpo estremecia sob o seu fardo. Murmurava de si para si, em tom grave e entrecortado, quaisquer palavras numa língua que não logrei distinguir e tateou a um canto entre uma pilha de instrumentos de aspecto invulgar e de cartas de navegação apodrecidas. O seu comportamento era uma estranha mistura de rabugice da segunda infância e da solene dignidade de um deus. Acabou por regressar ao convés e não voltei a vê-lo.

* * *

Um sentimento que não sei designar apossou-se-me do espírito: uma sensação que não admite análise, para a qual os ensinamentos do passado de nada servem e, receio, nem o porvir me fornecerá a chave. Para um espírito da estrutura do meu, esta última consideração é uma tortura. Nunca hei de ser esclarecido – sei que nunca o serei – relativamente à natureza das minhas concepções. E contudo não será de estranhar que tais concepções sejam mal definidas, posto que têm a sua origem em causas tão inteiramente inéditas. Um novo sentido – uma nova entidade – foi acrescentada à minha alma.

Faz já muito que pisei pela primeira vez o convés deste terrível navio e julgo que os raios do meu destino convergem para um foco. Homens incompreensíveis! Imersos em meditações cuja natureza não logro adivinhar, passam por mim sem darem pela minha presença. O fato de me esconder é puro disparate da minha parte, pois esta gente não quer ver. Ainda há instantes passei diretamente pela frente do imediato; não faz muito tempo que me aventurei a penetrar mesmo no camarote individual do comandante e de lá tirei o material com o qual escrevo e tenho vindo a escrever. Continuarei este diário de quando em quando. É certo que posso não ter ocasião de transmiti-lo ao mundo, mas não deixarei de o tentar. No último momento meterei o manuscrito numa garrafa e lançá-la-ei ao mar.

* * *

Deu-se um incidente que me forneceu novos motivos de reflexão. Será tudo isto obra de um desordenado Acaso? Tinha-me aventurado a sair ao convés e estendi-me, sem despertar a menor atenção, no meio de um amontoado de cabos de enxárcias e de velas usadas, no fundo do escaler. Enquanto meditava sobre a singularidade do meu destino, rabisquei inconscientemente com uma brocha de alcatrão as orlas de um cutelo cuidadosamente dobrado que tinha perto de mim sobre uma barrica. O cutelo está agora envergado no navio e as pinceladas irrefletidas da brocha, com a vela esticada, formam a palavra DESCOBERTA.

Ultimamente fiz várias observações sobre a estrutura do navio. Embora bem armado, creio que não se trata de um navio de guerra. Quer o cordame, quer a construção, quer o equipamento em geral levam a por de lado tal hipótese. O que ele não é posso eu facilmente compreender; receio é que seja impossível dizer o que é. Não sei como, mas, ao perscrutar o seu estranho modelo e a forma singular da mastreação, o seu enorme tamanho, o exagerado número de jogos de velas, a sua proa austeramente simples e a popa antiquada, acontece vir uma ou outra vez ao meu espírito uma sensação de coisas familiares, e a essas sombras indistintas da memória mistura-se sempre uma inexplicável reminiscência de velhas crônicas estrangeiras e de épocas remotas.

Estive a observar o madeiramento do navio. O material de que é feito é-me desconhecido. Há uma característica peculiar da madeira que me choca como se a tornasse inadequada para o fim ao qual foi destinada: refiro-me à sua extrema porosidade, considerada independentemente do fato dos estragos que os parasitas provocam nestes mares e para além da podridão concomitante com a idade. Isto poderá porventura parecer uma observação algo sutil, mas esta madeira teria todas as características do carvalho espanhol se este tivesse sido distendido por quaisquer meios não naturais.

Ao reler a frase anterior, ocorre-me intacto à memória o curioso adágio de um velho marinheiro holandês forjado nas intempéries: "É tão verdade", costumava dizer quando alguém albergava qualquer dúvida sobre a veracidade do que contava, "como é verdade existir um mar onde o próprio navio aumenta de volume como o corpo vivo de um marinheiro".

Há cerca de uma hora, ousei introduzir-me num grupo de tripulantes. Não me deram a menor atenção e, embora estivesse mesmo no meio de todos eles, pareceram completamente alheios à minha presença. Tal como o que tinha visto antes no porão, qualquer deles apresentava indícios de encanecida velhice. Os joelhos tremiam-lhes de doença; tinham os ombros duplamente abaulados devido à decrepitude; os seus rostos ressequidos abanavam ao vento; as vozes eram baixas, trêmulas e entrecortadas; os olhos cintilavam-lhes com a reuma dos anos e os cabelos grisalhos tremulavam espantosamente na tempestade. Em redor deles, por todo o convés, estavam espalhados instrumentos matemáticos da mais singular e obsoleta estrutura.

Referi um pouco atrás o envergar de um cutelo. Desde essa altura o navio, correndo com o vento, continuou a sua assustadora carreira para sul, com todo pano largado, dos topos dos mastros aos botalós dos cutelos baixos, e balançando a cada instante as vergas do joanete no mais aterrador inferno marinho que a imaginação humana possa conceber. Acabo de abandonar o convés, onde concluí ser impossível manter-me, embora a tripulação não pareça experimentar grande incomodidade. Afigura-se-me o milagre dos milagres o fato de a massa enorme de nosso navio não ser tragada de uma vez por todas. Estamos certamente condenados a pairar continuamente sobre a orla da Eternidade, sem dar um mergulho final no abismo. Deslizamos entre vagas mil mais tremendas do que alguma vez vi, com a facilidade da sagitada gaivota; e as ondas colossais erguem as cristas sobre nós como demônios das profundezas, mas como demônios limitados a meras ameaças e impedidos de destruir. Sinto-me tentado a atribuir esta repetida salvação à unica causa natural que pode explicar tal efeito: devo supor que o navio está sob a influência de uma forte corrente, de uma impetuosa ressaca.

Vi o comandante cara a cara, e no seu próprio camarote; mas, como esperava, não me prestou atenção. Embora nada haja no seu aspecto, para um observador pouco atento, que possa sugerir ser ele alguma coisa mais ou menos do que humano, misturaram-se-me uma irreprimível reverência e temor à sensação de espanto com que o observei. A estatura dele é quase a mesma que a minha, isto é, certa de um metro e setenta. É de compleição proporcionada e compacta, sem ser robusto nem quanto ao resto digno de nota. É, porém, a singularidade da expressão que lhe anima o rosto, é o intenso, maravilhoso e empolgante testemunho de velhice, de uma tão extrema velhice que suscita no meu espírito um sentimento, uma sensação inefável. A sua fronte, conquanto pouco enrugada, parece transportar a marca de uma miríade de anos. Os seus cabelos grisalhos são registros do passado e os olhos ainda mais cinzentos são sibilas do futuro. O pavimento do camarote estava densamente juncado de in-fólios com fivelas de ferro, de esboroados instrumentos científicos e de cartas obsoletas e há muito abandonadas. Tinha a cabeça inclinada sobre as mãos e lia atentamente, com um ardente olhar inquieto, um papel que tomei por uma carta de comando e que, em qualquer caso, apresentava a assinatura de um monarca. Murmurava de si para si, em voz baixa e rabugenta, como fazia o primeiro marinheiro que eu vira no porão, quaisquer sílabas de uma língua estrangeira, e, embora falasse mesmo junto de mim, a sua voz parecia chegar-me aos ouvidos vinda de uma milha de distância.

O navio e todos os que nele seguem estão imbuídos do espírito de Antanho. A tripulação desliza para um lado e para outro como fantasmas de séculos enterrados; os seus olhares têm uma expressão ansiosa e intranqüila; e quando os seus dedos, à minha passagem, caem sob o brilho cru das lanternas de combate, sinto o que nunca antes senti, embora toda a vida tenha negociado em antiguidades e me tenha impregnado das sombras das colunas caídas de Balbec, Tadmor, e Persépolis, até a minha própria alma se converter numa ruína.

Quando olho em redor envergonho-me das minhas apreensões iniciais. Se tremi ante a tempestade que até agora nos acompanhou, não deveria ficar horrorizado perante a adversidade do vendo e do oceano, que as palavras tornado e simum se tornam banais e ineficazes para descrever? Tudo o que se encontra na imediata proximidade do navio é a escuridão da noite eterna e um caos de água sem espuma; mas, cerca de uma légua para um e outro bordo, podem ver-se, indistintamente e de quando em quando, enormes baluartes de gelo, que se erguem ao longe contra o céu desolado, semelhantes às muralhas do universo.

Conforme imaginei, prova-se que o navio está sob a ação de uma corrente, se é que assim se pode apelidar uma maré que, gemendo e uivando através da brancura do gelo, troveja para o sul com uma velocidade semelhante à impetuosa precipitação de uma catarata.

Creio ser totalmente impossível transmitir o horror das minhas sensações; porém, a curiosidade de penetrar os mistérios destas horríveis regiões prevalece mesmo sobre o meu desespero e reconcilia-me com o aspecto mais hediondo da morte. Torna-se evidente que corremos ao encontro de qualquer revelação emocionante: algum segredo que nunca será transmitido, descoberta é o termo da vida. Talvez esta corrente nos leve ao próprio Pólo Sul. Devo considerar que esta suposição, aparentemente tão estranha, tem todas as probabilidades de estar correta.

A tripulação percorre o convés com passo inquieto e trêmulo; mas há na sua atitude uma expressão que é mais da ânsia da esperança do que da apatia do desespero.

Entretanto, temos ainda o vento na popa e, como navegamos com imenso pano, o navio é por vezes erguido do mar em peso. Oh, horror sobre horror! O gelo abre-se simultaneamente à direita e à esquerda e começamos a rodopiar vertiginosamente em imensos círculos concêntricos, em torno de um gigantesco anfiteatro, de paredes cuja altura se perde na escuridão e na distância. Mas pouco tempo me restará para ponderar sobre o meu destino: os círculos estreitam rapidamente... mergulhamos loucamente nas garras do turbilhão... e, por entre o rugir, o bramir e o ribombar do oceano e da tempestade, o navio começa a estremecer e – meu Deus! – e... a afundar. (3)


Notas:
1. Embarcação oriental armada de velas latinas e normalmente de dois mastros. (N. do T.)
2. Monstro marinho lendário das costas escandinavas. (N. do T.)
3. O Manuscrito encontrado numa garrafa foi publicado pela primeira vez em 1831, e só muitos anos mais tarde tomei conhecimento das cartas de Mercator, nas quais o oceano é representado a precipitar-se, por quatro embocaduras, no Abismo Polar (do Norte), para ser absorvido pelas entranhas da terra, sendo o próprio pólo representado por um rochedo negro que se ergue a uma altura prodigiosa. (N. do A.)

A Máscara da Morte Escarlate

A Máscara da Morte Escarlate

2181 palavras [± 12 minutos de leitura]

A "Morte Escarlate" havia muito devastava o país. Jamais se viu peste tão fatal ou tão hedionda. O sangue era sua revelação e sua marca ? a cor vermelha e o horror do sangue. Surgia com dores agudas e súbita tontura, seguidas de profuso sangramento pelos poros, e então a morte. As manchas rubras no corpo e principalmente no rosto da vítima eram o estigma da peste que a privava da ajuda e compaixão dos semelhantes. E entre o aparecimento, a evolução e o fim da doença não se passava mais de meia hora.

Mas o príncipe Próspero era feliz, destemido e astuto. Quando a população de seus domínios se reduziu à metade, mandou vir à sua presença um milhar de amigos sadios e divertidos dentre os cavalheiros e damas da corte e com eles retirou-se, em total reclusão, para um dos seus mosteiros encastelados. Era uma construção imensa e magnífica, criação do gosto excêntrico, mas grandioso do próprio príncipe. Circundava-a a muralha forte e muito alta, com portas de ferro. Depois de entrarem, os cortesãos trouxeram fornalhas e grandes martelos para soldar os ferrolhos. Resolveram não permitir qualquer meio de entrada ou saída aos súbitos impulsos de desespero do que estavam fora ou aos furores do que estavam dentro. O mosteiro dispunha de amplas provisões. Com essas precauções, os cortesãos podiam desafiar o contágio. O mundo externo que cuidasse de si mesmo. Nesse meio-tempo era tolice atormentar-se ou pensar nisso. O príncipe havia providenciado toda a espécie de divertimentos. Havia bufões, improvisadores, dançarinos, músicos, Beleza, vinho. Lá dentro, tudo isso mais segurança. Lá fora, a "Morte Escarlate".

Lá pelo final do quinto ou sexto mês de reclusão, enquanto a peste grassava mais furiosamente lá fora, o príncipe Próspero brindou os mil amigos com um magnífico baile de máscaras.

Era um espetáculo voluptuoso, aquela mascarada. Mas antes vou descrever onde ela aconteceu. Eram sete ? um suíte imperial. Em muitos palácios, porém, essas suítes formam uma perspectiva longa e reta, quando as portas se abrem até se encostarem nas paredes de ambos os lados, de tal modo que a vista de toda essa sucessão é quase desimpedida. Ali, a situação era muito diferente, como se devia esperar da paixão do duque pelo fantástico. Os salões estavam dispostos de maneira tão irregular que os olhos só podiam abarcar pouco mais de cada um por vez. Havia um desvio abrupto a cada vinte ou trinta metros e, a cada desvio, um efeito novo. À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma alta e estreita janela gótica dava para um corredor fechado que acompanhava as curvas da suíte. A cor dos vitrais dessas janelas variava de acordo com a tonalidade dominante na decoração do salão para o qual se abriam. O da extremidade leste, por exemplo, era azul ? e de um azul intenso eram suas janelas. No segundo salão os ornamentos e tapeçarias, assim como as vidraças, eram cor de púrpura. O Terceiro era inteiramente verde, e verdes também os caixilhos das janelas. O quarto estava mobiliado e iluminado com cor alaranjada ? o quinto era branco, e o sexto, roxo. O sétimo salão estava todo coberto por tapeçarias de veludo negro, que pendiam do teto e pelas paredes, caindo em pesadas dobras sobre um tapete do mesmo material e tonalidade. Apenas nesse salão, porém, a cor das janelas deixava de corresponder à das decorações. AS vidraças, ali, eram escarlates ? uma violenta cor de sangue.

Ora, em nenhum dos sete salões havia qualquer lâmpada ou candelabro, em meio à profusão de ornamentos de ouro espalhados por todos os cantos ou dependurados do teto. Nenhuma lâmpada ou vela iluminava o interior da seqüência de salões. Mas nos corredores que circundavam a suíte havia, diante de cada janela, um pesado tripé com um braseiro, que projetava seus raios pelos vitrais coloridos e, assim, iluminava brilhantemente a sala, produzindo grande número de efeitos vistosos e fantásticos. Mas no salão oeste, ou negro, o efeito do clarão de luz que jorrava sobre as cortinas escuras através das vidraças da cor do sangue era desagradável ao extremo e produzia uma expressão tão desvairada no semblante do que entravam que poucos no grupo sentiam ousadia bastante para ali penetrar.

Era também nesse apartamento que se achava, encostado à parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo oscilava de um lado para o outro com um bater surdo, pesado, monótono; quando o ponteiro dos minutos completava o circuito do mostrador e o relógio ia dar as horas, de seus pulmões de bronze brotava um som claro e alto e grave e extremamente musical, mas em tom tão enfático e peculiar que, ao final de cada hora, os músicos da orquestra se viam obrigados a interromper momentaneamente a apresentação para escutar-lhe o som; com isso os dançarinos forçosamente tinham de parar as evoluções da valsa e, por um breve instante, todo o alegre grupo mostrava-se perturbado; enquanto ainda soavam os carrilhões do relógio, observava-se que os mais frívolos empalideciam e os mais velhos e serenos passavam a mão pela teste, como se estivessem num confuso devaneio ou meditação. Mas, assim que os ecos desapareciam interiormente, risinhos levianos logo se riam do próprio nervosismo e insensatez e, em sussurros, diziam uns aos outros que o próximo soar de horas não produziria neles a mesma emoção; mas, após um lapso de sessenta minutos (que abrangem três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa), quando o relógio dava novamente as horas, acontecia a mesma perturbação e idênticos tremores e gestos de meditação de antes.

Apesar disso tudo, que festa alegre e magnífica! Os gosto do duque eram estranhos. Sabia combinar cores e efeitos. Menosprezando a mera decoração da moda, seus arranjos mostravam-se ousados e veementes, e suas idéias brilhavam com um esplendor bárbaro. Alguns podiam considerá-lo louco, sendo desmentidos por seus seguidores. Mas era preciso ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo para convencer-se disso.

Para essa grande festa, ele próprio dirigiu, em grande parte, a ornamentação cambiante dos sete salões, e foi seu próprio gosto que inspirou as fantasias dos foliões. Claro que eram grotescas. Havia muito brilho, resplendor, malícia e fantasia ? muito daquilo que foi visto depois no Hernani. Havia figuras fantásticas com membros e adornos que não combinavam. Havia caprichos delirantes como se tivessem sido modelados por um louco. Havia muito de beleza, muito de libertinagem e de extravagância, algo de terrível e um tanto daquilo que poderia despertar repulsa. De um ao outro, pelos sete salões, desfilava majestosamente, na verdade, uma multidão de sonhos. E eles ? os sonhos ? giravam sem parar, assumindo a cor de cada salão e fazendo com que a impetuosa música da orquestra parecesse o eco de seus passos. Daí a pouco soa o relógio de ébano colocado no salão de veludo. Então, por um momento, tudo se imobiliza e é tudo silêncio, menos a voz do relógio. Os sonhos se congelam como estão. Mas os ecos das batidas extinguem-se ? duraram apenas um instante ? e risos levianos, mal reprimidos, flutuam atrás dos ecos, à medida que vão morrendo. E logo a música cresce de novo, e os sonhos revivem e rodopiam mais alegremente que nunca, assumindo as cores das muitas janelas multicoloridas, através das quais fluem os raios luminosos dos tripés. Ao salão que fica a mais oeste de todos os sete, porém, nenhum dos mascarados se aventura agora; pois a noite está se aproximando do fim: ali flui uma luz mais vermelha pelos vitrais cor de sangue e o negror das cortinas escuras apavora; para aquele que pousa o pé no tapete negro, do relógio de ébano ali perto chega um clangor ensurdecido mais solene e enfático que aquele que atinge os ouvidos dos que se entregam às alegrias nos salões mais afastados.

Mas nesses outros salões cheios de gente batia febril o coração da vida. E o festim continuou em remoinhos até que, afinal, começou a soar meia-noite no relógio. Então a música cessou, como contei, as evoluções dos dançarinos se aquietaram, e, como antes, tudo ficou intranqüilamente imobilizado. Mas agora iriam ser doze as badaladas do relógio; e desse modo mais pensamentos talvez tenham se infiltrado, por mais tempo, nas meditações dos mais pensativos, entre aqueles que se divertiam. E assim também aconteceu, talvez, que, antes de os últimos ecos da última badalada terem mergulhado inteiramente no silêncio, muitos indivíduos na multidão puderam perceber a presença de uma figura mascarada que antes não chamara a atenção de ninguém. E, ao se espalhar em sussurros o rumor dessa nova presença, elevou-se aos poucos de todo o grupo um zumbido ou murmúrio que expressava a reprovação e surpresa ? e, finalmente, terror, horror e repulsa.

Numa reunião de fantasmas como esta que pintei, pode-se muito bem supor que nenhuma aparência comum poderia causar tal sensação. Na verdade, a liberdade da mascarada dessa noite era praticamente ilimitada; mas a figura em questão ultrapassava o próprio Herodes, indo além dos limites até do indefinido decoro do príncipe. Existem cordas, nos corações dos mais indiferentes, que não podem ser tocadas sem emoção. Até para os totalmente insensíveis, para quem a vida e morte são alvo de igual gracejo, existem assuntos com os quais não se pode brincar. Na verdade, todo o grupo parecia agora sentir profundamente que na fantasia e no rosto do estranho não existia graça nem decoro. A figura era alta e esquálida, envolta do pés a cabeça em veste mortuárias. A máscara que escondia o rosto procurava assemelhar-se de tal forma com a expressão enrijecida de um cadáver que até mesmo o exame mais atento teria dificuldade em descobrir o engano. Tudo isso poderia ter sido tolerado, e até aprovado, pelos loucos participantes da festa, se o mascarado não tivesse ousado encarnar o tipo da Morte Escarlate. Seu vestuário estava borrifado de sangue ? e sua alta testa, assim como o restante do rosto, salpicada com o horror escarlate.

Quando os olhos do príncipe Próspero pousaram nessa imagem espectral (que andava entre os convivas com movimentos lentos e solenes, como se quisesse manter-se à altura do papel), todos perceberam que ele foi assaltado por um forte estremecimento de terror ou repulsa, num primeiro momento, mas logo o seu semblante tornou-se vermelho de raiva.

– Quem ousa... ? perguntou com voz rouca aos convivas que estavam perto ? quem ousa nos insultar com essa caçoada blasfema? Peguem esse homem e tirem sua máscara, para sabermos quem será enforcado no alto dos muros, ao amanhecer!

O príncipe Próspero estava na sala leste, ou azul, ao dizer essas palavras. Elas ressoaram pelos sete salões, altas e claras, pois o príncipe era um homem ousado e robusto e a música se calara com um sinal de sua mão.

O príncipe achava-se no salão azul com um grupo de pálidos convivas ao seu lado. Assim que falou, houve um ligeiro movimento dessas pessoas na direção do intruso, que, naquele momento, estava bem ao alcance das mãos, e agora, com passos decididos e firmes, se aproximava do homem que tinha falado. Mas por causa de um certo temor sem nome, que a louca arrogância do mascarado havia inspirado em toda a multidão, não houve ninguém que estendesse a mão para detê-lo; de forma que, desimpedido , passou a um metro do príncipe e, enquanto a vasta multidão, como por um único impulso, se retraía do centro das salas para as paredes, ele continuou seu caminho sem deter-se, no mesmo passo solene e medido que o distinguira desde o inicio, passando do salão azul para o púrpura ? do púrpura para o verde ? do verde para o alaranjado ? e desse ainda para o branco ? e daí para o roxo, antes que se fizesse qualquer movimento decisivo para dete-lo. Foi então que o príncipe Próspero, louco de raiva e vergonha por sua momentânea covardia, correu apressadamente pelos seis salões, sem que ninguém o seguisse por causa do terror mortal que tomara conta de todos. Segurando bem alto um punhal desembainhado, aproximou-se, impetuosamente, até cerca de um metro do vulto que se afastava, quando este, ao atingir a extremidade do salão de veludo, virou-se subitamente e enfrentou seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo ? e o punhal caiu cintilando no tapete negro, sobre o qual, no instante seguinte, tombou prostrado de morte o príncipe Próspero. Então, reunindo a coragem selvagem do desespero, um bando de convivas lançou-se imediatamente no apartamento negro e, agarrando o mascarado, cuja alta figura permanecia ereta e imóvel à sombra do relógio de ébano, soltou um grito de pavor indescritível, ao descobrir que, sob a mortalha e a máscara cadavérica, que agarravam com tamanha violência e grosseria, não havia qualquer forma palpável.

E então reconheceu-se a presença da Morte Escarlate. Viera como um ladrão na noite. E um a um foram caindo os foliões pelas salas orvalhadas de sangue, e cada um morreu na mesma posição de desespero em que tombou no chão. E a vida do relógio de Ébano dissolveu-se junto com a vida do último dos dissolutos. E as chamas dos braseiros extinguiram-se. E o domínio ilimitado das Trevas, da Podridão e da Morte Escarlate estendeu-se sobre tudo.





O Barril de Amontillado

O Barril de Amontillado

2197 palavras [± 10 minutos de leitura]

Suportei o melhor que pude as injúrias de Fortunato; mas, quando ousou insultar-me, jurei vingança. Vós, que tão bem conheceis a natureza de meu caráter, não havereis de supor, no entanto, que eu tenha proferido qualquer ameaça. No fim, eu seria vingado. Este era um ponto definitivamente assentado, mas a própria decisão com que eu assim decidira excluía qualquer ideia de perigo. Assim devia apenas castigar, mas castigar impunemente. Uma injúria permanece irreparada, quando o castigo alcança aquele que se vinga. Permanece, igualmente, sem reparado, quando o vingador deixa de fazer com que aquele que o ofendeu compreenda que e ele quem se vinga.

É preciso que se saiba que, nem por meio de palavras, nem de qualquer ato, dei a Fortunato motivo para que duvidasse de minha boa vontade. Continuei, como de costume, a sorrir em sua presença, e ele não percebia que o meu sorriso, agora, tinha como origem a idéia da sua imolação.

Esse tal Fortunato tinha um ponto fraco, embora, sob outros aspectos, fosse um homem digno de ser respeitado e, até mesmo, temido. Vangloriava-se sempre de ser entendido em vinhos. Poucos italianos possuem verdadeiro talento para isso. Na maioria das vezes, seu entusiasmo se adapta aquilo que a ocasião e a oportunidade exigem, tendo em vista enganar os milionários ingleses e austríacos. Em pintura e pedras preciosas, Fortunado, como todos os seus compatriotas, era um intrujão; mas, com respeito a vinhos antigos, era sincero. Sob este aspecto, não havia grande diferença entre nós – pois que eu também era hábil conhecedor de vinhos italianos, comprando-os sempre em grande quantidade, sempre que podia. Uma tarde, quase ao anoitecer, em plena loucura do carnaval, encontrei o meu amigo. Acolheu-me com excessiva cordialidade, pois que havia bebido muito. Usava um traje de truão, muito justo e listrado, tendo à cabeça um chapéu cônico, guarnecido de gizos.

Fiquei tão contente de encontrá-lo, que julguei que jamais estreitaria a sua mão como naquele momento.

– Meu caro Fortunato – disse-lhe eu -, foi uma sorte encontrá-lo. Mas, que bom aspecto tem você hoje! Recebi um barril como sendo de Amontillado, mas tenho minhas duvidas.

– Como? – disse ele. – Amontillado? Um barril? Impossível! E em pleno carnaval!

– Tenho minhas dúvidas – repeti – e seria tolo que o pagasse como sendo de Amontillado antes de consultá-lo sobre o assunto. Não conseguia encontrá-lo em parte alguma, e receava perder um bom negócio.

– Amontillado!

– Tenho minhas dúvidas.

– Amontillado!

– E preciso efetuar o pagamento.

– Amontillado!

– Mas, como você esta ocupado, irei à procura de Luchesi. Se existe alguém que conheça o assunto, esse alguém é ele. Ele me dirá ...

– Luchesi é incapaz de distinguir entre um Amontillado e um Xerez.

– Não obstante, há alguns imbecis que acham que o paladar de Luchesi pode competir com o seu.

-Vamos, vamos embora.

– Para onde?

– Para as suas adegas.

– Não, meu amigo. Não quero abusar de sua bondade. Penso que você deve ter algum compromisso. Luchesi...

– Não tenho compromisso algum. Vamos.

– Não, meu amigo. Embora você não tenha compromisso algum, vejo que esta com muito frio. E as adegas são insuportavelmente úmidas. Estão recobertas de salitre.

– Apesar de tudo, vamos. Não importa o frio. Amontillado! Você foi enganado. Quanto a Luchesi, não sabe distinguir entre Xerez e Amontillado.

Assim falando, Fortunato tomou-me pelo braço. Pus uma máscara de seda negra e, envolvendo-me bem em meu roquelaire, deixei-me conduzir ao meu palazzo.

Não havia nenhum criado em casa, pois que todos haviam saído para celebrar o carnaval. Eu lhes dissera que não regressaria antes da manhã seguinte, e lhes dera ordens estritas para que não arredassem pé da casa. Essas ordens eram suficientes, eu bem o sabia, para assegurai o seu desaparecimento imediato, tão logo eu lhes voltasse as costas. Tomei duas velas de seus candelabros e, dando uma a Fortunato, conduzi-o, curvado, através de uma seqüência de compartimentos, à passagem abobadada que levava à adega.

Chegamos, por fim, aos últimos degraus e detivemo-nos sobre o solo úmido das catacumbas dos Montresor.

O andar de meu amigo era vacilante e os guizos de seu gorro retiniam a cada um de seus passos.

– E o barril? – perguntou.

– Está mais adiante – respondi. – Mas observe as brancas teias de aranha que brilham nas paredes dessas cavernas.

Voltou-se para mim e olhou-me com suas nubladas pupilas, que destilavam as lágrimas da embriaguez.

– Salitre? – perguntou, por fim.

– Salitre – respondi. – Há quanto tempo você tem essa tosse?

Meu pobre amigo pôs-se a tossir sem cessar e, durante muitos minutos, não lhe foi possível responder.

– Não é nada – disse afinal.

– Vamos – disse-lhe com decisão. – Vamos voltar. Sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; você é feliz, como eu também o era. Você é um homem cuja falta será sentida. Quanto a mim, não impor-ta. Vamos embora. Você ficará doente, e não quero arcar com essa responsabilidade. Além disso, posso procurar Luchesi . . .

– Basta – exclamou ele. – Esta tosse não tem importância; não me matará. Não morrerei por causa de uma simples tosse.

-É verdade, é verdade – respondi. – E eu, de fato, não tenho intenção alguma de alarmá-lo sem motivo. Mas você deve tomar precauções. Um gole deste Medoc nos defenderá da umidade.

E, dizendo isto, parti o gargalo de uma garrafa que se achava numa longa

fila de muitas outras iguais, sobre o chão úmido.

– Beba – disse, oferecendo-lhe o vinho.

Levou a garrafa aos lábios, olhando-me de soslaio. Fez uma pausa e saudou-me com familiaridade, enquanto seus guizos soavam.

– Bebo – disse ele – à saúde dos que repousam enterrados, em torno de nós.

– E eu para que você tenha vida longa. Tomou-me de novo o braço e prosseguimos. – Estas cavernas – disse-me – são extensas.

– Os Montresor – respondi – formavam uma família grande e numerosa.

– Esqueci qual o seu brasão.

– Um grande pé de ouro, em campo azul. O pé esmaga uma serpente ameaçadora, cujas presas se acham cravadas no salto.

– E a divisa?

– Nemo me impune lacessit.

– Muito bem! – exclamou.

O vinho brilhava em seus olhos e os guizos retiniam. Minha própria imaginação se animou, devido ao Medoc. Através de paredes de ossos empilhados, entremeados de barris e tonéis, penetramos nos recintos mais profundos das catacumbas. Detive-me de novo e, essa vez, me atrevi a segurar Fortunato pelo braço, acima do cotovelo.

– O salitre! – exclamei. – Veja como aumenta. Prende-se, como musgo, nas abóbadas. Estamos sob o leito do rio. As gotas de umidade filtram-se por entre os ossos. Vamos. Voltemos, antes que seja tarde demais. Sua tosse...

– Não é nada – respondeu ele. – Prossigamos. Mas, antes, tomemos outro gole do Medoc.

Parti o gargalo de uma garrafa de vinho De Grâve a dei-a a Fortunato. Ele a esvaziou de um trago. Seus olhos cintilaram com brilho ardente. Pôs-se a rir e atirou a garrafa para o ar, com gesticulação que não compreendi.

Olhei-o, surpreso. Repetiu o movimento, um movimento grotesco.

– Você não compreende? – perguntou.

– Não, não compreendo – respondi.

– Então é porque você não pertence à irmandade.

– Como?

– Não pertence à maçonaria.

– Sim, sim. Pertenço.

– Você? Impossível! Um maçom?

– Um maçom – respondi.

– Prove-o – disse ele.

– Eis aqui – respondi, tirando de debaixo das dobras de meu roquelaire uma colher de pedreiro.

– Você está gracejando! – exclamou recuando alguns passos. – Mas prossigamos: vamos ao Amontillado.

– Está bem – disse eu, guardando outra vez a ferramenta debaixo da capa e oferecendo-lhe o braço. Apoiou-se pesadamente em mim. Continuamos nosso caminho, em busca do Amontillado. Passamos através de uma série de baixas abóbadas, descemos, avançamos ainda, tornamos a descer e chegamos, afinal, a uma profunda cripta, cujo ar, rarefeito, fazia com que nossas velas bruxuleassem, ao invés de arder normalmente.

Na extremidade mais distante da cripta aparecia uma outra, menos espaçosa. Despojos humanos empilhavam-se ao longo de seus muros, até o alto das abóbadas, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três dos lados dessa cripta eram ainda adornados dessa maneira. Do quarto, os ossos haviam sido retirados e jaziam espalhados pelo chão, formando, num dos cantos, um monte de certa altura. Dentro da parede, que, com a remoção dos ossos, ficara exposta, via-se ainda outra cripta ou recinto interior, de uns quatro pés de profundidade, três de largura e seis ou sete de altura. Não parecia haver sido construída para qualquer uso determinado, mas constituir apenas um intervalo entre os dois enormes pilares que sustinham a cúpula das catacumbas, tendo por fundo uma das paredes circundantes de sólido granito.

Foi em vão que Fortunato, erguendo sua vela bruxuleante, procurou divisar a profundidade daquele recinto. A luz, fraca, não nos permitia ver o fundo.

– Continue – disse-lhe eu. – O Amontillado está aí dentro. Quanto a Luchesi. . .

– É um ignorante – interrompeu o meu amigo, enquanto avançava com passo vacilante, seguido imediatamente por mim.

Num momento, chegou ao fundo do nicho e, vendo o caminho interrompido pela rocha, deteve-se, estupidamente perplexo. Um momento após, eu já o havia acorrentado ao granito, pois que, em sua superfície, havia duas argolas de ferro, separadas uma da outra, horizontalmente, por um espaço de cerca de dois pés. De uma delas pendia uma corrente; da outra, um cadeado. Lançar a corrente em torno de sua cintura, para prendê-lo, foi coisa de segundos. Ele estava demasiado atônito para oferecer qualquer resistência.

Retirando a chave, recuei alguns passos.

– Passe a mão pela parede – disse-lhe eu. – Não poderá deixar de sentir o salitre. Está, com efeito, muito úmida. Permita-me, ainda uma vez, que lhe implore para voltar. Não? Então, positivamente, tenho de deixá-lo. Mas, primeiro, devo prestar-lhe todos os pequenos obséquios ao meu alcance.

– O Amontillado! – exclamou o meu amigo, que ainda não se refizera de seu assombro.

– É verdade – respondi -, o Amontillado.

E, dizendo essas palavras, pus-me a trabalhar entre a pilha de ossos a que já me referi. Jogando-os para o lado, deparei logo com uma certa quantidade de pedras de construção e argamassa. Com este material e com a ajuda de minha colher de pedreiro, comecei ativamente a tapar a entrada do nicho.

Mal assentara a primeira fileira de minha obra de pedreiro, quando descobri que a embriaguez de Fortunato havia, em grande parte, se dissipado. O primeiro indício que tive disso foi um lamentoso grito, vindo do fundo do nicho. Não era o grito de um homem embriagado. Depois, houve um longo e obstinado silêncio. Coloquei a segunda, a terceira e a quarta fileiras. Ouvi, então, as furiosas sacudidas da corrente. O ruído prolongou-se por alguns minutos, durante os quais, para deleitar-me com ele, interrompi o meu trabalho e sentei-me sobre os ossos. Quando, por fim, o ruído cessou, apanhei de novo a colher de pedreiro e acabei de colocar, sem interrupção, a quinta, a sexta e a sétima fileiras. A parede me chegava, agora, até a altura do peito. Fiz uma nova pausa e, segurando a vela por cima da obra que havia executado, dirigi a fraca luz sobre a figura que se achava no interior.

Uma sucessão de gritos altos e agudos irrompeu, de repente, da garganta do vulto acorrentado, e pareceu impelir-me violentamente para trás. Durante breve instante, hesitei... tremi. Saquei de minha espada e pus-me a desferir golpes no interior do nicho; mas um momento de reflexão bastou para tranquilizar-me. Coloquei a mão sobre a parede maciça da catacumba e senti-me satisfeito. Tornei a aproximar-me da parede e respondi aos gritos daquele que clamava. Repeti-os, acompanhei-os e os venci em volume e em força. Fiz isso, e o que gritava acabou por silenciar.

Já era meia-noite, a minha tarefa chegava ao fim. Completara a oitava, a nona e a décima fileiras. Havia terminado quase toda a décima primeira – e restava apenas uma pedra a ser colocada e rebocada em seu lugar. Ergui-a com grande esforço, pois que pesava muito, e coloquei-a, em parte, na posição a que se destinava. Mas, então, saiu do nicho um riso abafado que me pôs os cabelos em pé. Seguiu-se-lhe uma voz triste, que tive dificuldade em reconhecer como sendo a do nobre Fortunato. A voz dizia:

– Ah! ah! ah! . . . eh! eh! eh! . . . Esta é uma boa piada... uma excelente piada! Vamos rir muito no palazzo por causa disso . . . ah! ah! ah! . . . por causa do nosso vinho... ah! ah! ah!

– O Amontillado! – disse eu.

– Ah! ah! ah! . . . sim, sim . . . o Amontillado. Mas não está ficando tarde? Não estarão nos esperando no palácio. . . a Sra. Fortunato e os outros? Vamos embora.

– Sim – respondi -, vamos embora.

– Pelo amor de Deus, Montresor!

– Sim – respondi -, pelo amor de Deus!

Mas esperei em vão qualquer resposta a estas palavras. Impacientei-me.

Gritei, alto:

– Fortunato!

Nenhuma resposta.

Tornei a gritar:

– Fortunato!

Ainda agora, nenhuma resposta. Introduzi uma vela pelo orifício que restava e deixei-a cair dentro do nicho. Chegou até mim, como resposta, apenas um tilintar de guizos. Senti o coração opresso, sem dúvida devido à umidade das catacumbas. Apressei-me para terminar o meu trabalho. Com esforço, coloquei em seu lugar a última pedra – e cobri-a com argamassa. De encontro à nova parede, tornei a erguer a antiga muralha de ossos. Durante meio século, mortal algum os perturbou.





Leonor

Leonor

2169 palavras [± 10 minutos de leitura]

Sou oriundo duma raça caracterizada pelo vigor da fantasia e pelo ardor da paixão.

Os homens chamaram-me louco; mas ainda não está resolvido o problema ? se a loucura é ou não a suprema inteligência ? se muito do que é glorioso ? se tudo o que é profundo ? não tem a sua origem numa doença do pensamento ? em modalidades do espírito exaltadas a custa das faculdades gerais. Aqueles que sonham de dia sabem muitas coisas que escapam àqueles que somente de noite sonham. Nas suas vagas visões obtêm relances de eternidade e, quando despertam, estremecem ao verem que estiveram mesmo à beira do grande segredo. Penetram sem leme nem bússola, no vasto oceano da "luz inefável"; e de novo, como os aventureiros do geógrafo núbio, agressi sunt mare tenebrarum, quid in eo esset exploraturi.

Diremos, então, que estou doido. Concordo, pelo menos, em que há dois estados distintos da minha existência mental ? o de uma razão lúcida que não pode ser contestada, e pertence à memória de acontecimentos que constituem a primeira época da minha vida ? e um estado de sombra e dúvida, que abrange o presente e a recordação do que constitui a segunda grande era do meu ser. Por conseqüência, acreditai tudo o que eu disser do primeiro período de minha existência; e dai ao que eu vier a contar dos derradeiros tempos o crédito que se vos afigurar justo; ou ponde-o completamente em dúvida; ou, se não puderes duvidar, fazei como Édipo e procurai decifrar o seu enigma.

Aquela que na minha mocidade amei, e de quem agora, serena e lucidamente, estou traçando estas recordações, era a filha única da única irmã de minha mãe havia muito falecida.

Minha prima chamava-se Leonor. Havíamos sempre vivido juntos, sob um sol tropical, no vale de Many-Coloured Crass. Jamais viandante algum aventurou seus passos por aquele vale; pois se estendia por entre uma cadeia de montes gigantescos, que sobre ele debruçavam as suas escarpas, vedando o acesso dos raios solares aos seus mais aprazíveis recônditos. Nas suas proximidades atalho algum jamais fora trilhado, e, para chegarmos ao nosso lar, não precisávamos afastar, com força, a folhagem de milhares de árvores, nem esmagar milhões de fragrantes flores. Assim vivíamos nós sozinhos, nada sabendo do mundo para além do vale ? eu, minha prima e sua mãe.

Das obscuras regiões de além dos montes, no extremo superior de nossos domínios, descia um estreito e profundo rio, que excedia em brilho e limpidez tudo menos os claros olhos de Leonor; e, serpenteando furtivamente em intrincados meandros, embrenhava-se por fim através de uma sombria garganta, por entre montes ainda mais negros do que aqueles de que brotara. Denominávamo-lo o "Rio do Silêncio", pois as suas águas pareciam ter a faculdade de tudo emudecer. Do seu leito nenhum murmúrio se erguia, e tão de mansinho ia desfiando seu curso que os diáfanos seixinhos que esmaltavam o fundo e que nós tanto gostávamos de contemplar, permaneciam absolutamente imóveis, refulgindo eternamente no lugar onde um dia se quedaram.

A margem do rio e de muitos cintilantes riachos que, por tortuosos rodeios, a ele afluíam, bem como os espaços que as margens desciam até o leito de seixos do fundo das águas ? todos estes lugares, não menos de que toda a superfície do vale, desde o rio até as montanhas que o circundavam, eram tapetados por uma relva verde, macia, espessa, curta, perfeitamente lisa e perfumada, mas tão profusamente matizada com botões de ouro, margaridas, violetas e asfódelos que a sua extraordinária beleza dilatava nossos corações com eloquência e paixão, do amor e da glória de Deus.

E, aqui e além, em maciços que se diriam antes matas de sonhos, brotavam fantásticas árvores, cujos altos e esguios troncos se não erguiam a prumo, mas, torcendo-se, inclinavam-se para a luz que ao meio-dia irrompia pelo centro do vale. A sua casca apresentava ao mesmo tempo o esplendor do marfim e da prata, e seria mais suave do que tudo não fosse a suave face de Leonor; de sorte que, se não fora o verde brilhante das enormes folhas que das suas copas se alastravam em linhas compridas e trêmulas, embaladas pelos zéfiros, poderia alguém imaginá-las gigantescas serpentes da Síria, prestando homenagem ao seu soberano, o Sol.

De mãos dadas, durante 15 anos, vaguei com Leonor por este vale, antes de o Amor penetrar em nossos corações. Era uma tarde, ao cerrar-se o terceiro lustro da sua vida e o quarto da minha: estávamos sentados, abraçados, debaixo das árvores-serpentes e contemplávamos as nossas imagens refletidas no espelho das águas do rio. Nem mais uma palavra pronunciamos durante o resto daquele doce dia, e na manhã seguinte ainda as nossas palavras eram trêmulas e raras. Do fundo das águas havíamos tirado o deus Eros, e agora sentíamos que havíamos ateado dentro de nós as almas ardorosas dos nossos maiores. As paixões que durante séculos haviam caracterizado a nossa raça acudiam agora de tropel com as fantasias que os haviam igualmente distinguido e bafejavam venturas e bênçãos sobre o vale de Many-Coloured Crass. Tudo como por encanto mudou. Sobre as árvores onde jamais se conhecera uma flor desabrocharam agora estranhas flores em forma de estrela. Tornaram-se mais carregados os tons das alfombras de verdura; e quando uma a uma murcharam as brancas margaridas, surgiram em seus lugares, dez a dez, os asfóidelos da cor dos rubis. E a vida brotava em nossos atalhos; pois o alto flamingo, até aqui nunca visto, com todas as álacres e variegadas aves, ostentava ante nós a sua plumagem escarlate. Peixes de ouro e de prata acorriam agora ao rio, de cujo seio se erguia, de mansinho, um murmúrio que, por fim, foi engrossando até se transformar numa suave melodia mais divina de que a da harpa de Éolo, mais doce do que tudo, não fosse a voz de Leonor. E agora, também uma enorme nuvem, que por muito tempo dominara as regiões do Hesper, avançara num deslumbramento carmesim e ouro e viera pairar serenamente sobre nós, descendo dia a dia até pousar sobre os cumes dos montes, transfigurando-os com o seu glorioso esplendor e encerrando-nos, como que para sempre, dentro duma mágica prisão de magnificência e glória.

O encanto de Leonor era o de um Serafim, mas ela era uma adolescente ingênua e simples como a curta vida que vivera entre as flores. Nenhum artifício mascarava o amor que lhe estuava no coração, e ela examinava comigo os seus mais íntimos recessos, quando passeávamos no vale de Many-Coloured e conversávamos sobre as notáveis transformações que nele ultimamente se haviam operado.

Um dia, finalmente, tendo falado, banhada em pranto da triste e derradeira transformação que a Humanidade deve sofrer, nunca mais deixou de discutir este doloroso assunto, intercalando-o em todas as nossas conversas, como nos cantos do bardo de Schiraz estão constantemente ocorrendo as mesmas imagens, a cada passo repetidas em cada impressionante variação de frase.

Ela tinha visto que o dedo da morte se lhe cravara no seio ? que, como o efêmero, ela fora feita perfeita em encanto e beleza somente para morrer; mas para ela os terrores do túmulo apenas consistiam numa apreensão, que uma tarde, ao crepúsculo, ela me revelou, passeando comigo pelas margens do Rio do Silêncio. O que a penalizava era pensar que, após havê-la sepultado no vale de Many-Coloured, eu abandonaria para sempre aquelas ditosas paragens, transferindo o amor, que só dela tão apaixonadamente agora era, para alguma jovem do mundo exterior e banal. E, então, ao ouvir-lhe expressar este pesar, atirei-me aos pés de Leonor e jurei que nunca me ligaria pelo casamento a filha alguma da Terra ? que jamais eu, fosse de que maneira fosse, trairia a sua querida recordação. Invoquei o Onipotente Senhor como testemunha da pia solenidade do meu juramento. E a maldição de que Deus e dela impetrei, no caso de eu atraiçoar meu juramento, envolvia uma pena cujo extraordinário horror me não permite referi-la aqui.

Os olhos de Leonor se tornaram mais claros, quando eu assim exprimi o carinho que a prendia à minha vida; como se do peito arrancassem um peso mortal; tremeu e chorou amargamente; mas (que era ela senão uma criança?) aceitou o juramento, que lhe tornava mais suave o leito de morte. E disse-me, não muitos dias depois, finando-se tranqüilamente, que, em vista do que eu fizera para alívio e consolo do seu espírito, velaria sempre por mim depois de morta, e se tal lhe fosse permitido, voltaria visivelmente a visitar-me nas vigílias da noite; se, porém, isto ultrapassasse o que às almas no Paraíso é permitido, dar-me-ia, pelo menos, freqüentes indicações de sua presença, suspirando sobre mim nos ventos da tarde ou enchendo o ar que eu respirasse com o perfume dos turíbulos dos anjos. E, com estas palavras, exalou a sua inocente vida, ponto termo à primeira época da minha.

Até aqui é fiel o relato que fiz. Mas, quando transponho a barreira formada pela morte de minha amada e penetro na segunda era da minha existência, sinto uma sombra empolgar-me o cérebro e não confio na perfeita sanidade das minhas palavras. Mas, prossigamos.

Os anos foram-se arrastando pesadamente e eu continuei habitando no vale ? mas uma segunda transformação se operara em todas as coisas. As flores em forma de estrela secaram nas árvores e não mais reapareceram. Apagaram-se os matizes do verde tapete de relva; e, um a um, murcharam os rubros asfódelos e, em seu lugar, surgiram, dez a dez, escuras violetas sempre carregadas de orvalho.

A vida desapareceu dos nossos atalhos; o alto flamingo já não exibia ante nós a sua plumagem escarlate, mas tristemente fugiu do vale para os montes com todas as álacres aves multicores que em sua companhia tinham vindo. Os peixes de ouro e prata nunca mais esmaltaram o nosso doce rio. A suave melodia que encantara mais do que a harpa e Éolo e fora mais divina do que tudo menos a voz de Leonor, foi-se pouco a pouco extinguindo, sumindo-se em murmúrios cada vez mais débeis, até que, por fim, o rio voltou à solenidade do seu primitivo silêncio. E então ergueu-se de novo a enorme nuvem e, abandonando os píncaros dos montes à sua antiga tristeza, recuou para as regiões de Hesper, e consigo levou o áureo esplendor e todas as magnificências que por alguns anos transfiguraram o vale de Many-Coloured Crass.

Todavia, as promessas de Leonor não ficaram no olvido; pois eu ouvia os sons do balouçar dos turíbulos dos anjos; correntes dum sagrado perfume flutuavam permanentemente sobre o vale; nas horas ermas, quando meu coração palpitava pesadamente, os ventos que me refrescavam a fronte vinham carregados de brandos suspiros; indistintos murmúrios ? oh, mas só uma vez! fui desperto de um sono, que se me afigurava o sono da morte, pela pressão de uns lábios espirituais sobre os meus.

Mas o vácuo dentro do meu coração recusava-se, ainda assim, a ser preenchido. Tinha saudades do amor que o enchera a transbordar. Por fim o vale fazia-me sofrer pelas recordações, e abandonei-o então para sempre, trocando-o pelas vaidades e pelos turbulentos triunfos do mundo.

Encontrei-me dentro duma estranha cidade, onde todas as coisas podiam ter servido para me apagaram da lembrança os doces sonhos que por tanto tempo sonhara no vale. O luxo e a pompa de uma corte majestosa, o doido clangor das armas e a radiosa beleza das mulheres desvairaram-me e embriagaram-me o cérebro. Até aqui, porém, ainda a minha alma permanecera fiel aos seus juramentos, e nas horas silentes da noite ainda até mim chegavam as revelações da presença de Leonor.

De súbito, cessaram estas manifestações; mundo escureceu de todo ante os meus olhos, e quedei-me espavorido ante o escaldante pensamento que me possuía ? ante as terríveis tentações que me empolgavam; pois de muito longe, de uma terra distante e ignota, viera para a alegre corte do rei que eu servia, uma donzela a cuja beleza todo o meu perjuro coração imediatamente se rendeu ? a cujos pés me curvei sem uma luta, no mais ardente, no mais abjeto culto de amor.

Que era, na verdade, a minha paixão pela adolescente do vale comparada com o fervor e o delírio, o alucinado êxtase de adoração com que eu depunha toda a minha alma em pranto aos pés da etérea Hermengarda? ? Oh, que deslumbrante era a angélica Hermengarda! E na minha alma para ninguém mais havia lugar. ? Oh, que divina era a celestial Hermengarda! E quando eu sondava as profundezas dos olhos inolvidáveis, só neles pensava ? só neles e nela!

Casei; não me arreceei da maldição que invocara; nem senti o amargor de haver infringido um juramento solene.

Mas uma vez, no silêncio da noite, chegaram até mim, através das minhas persianas, os brandos suspiros que havia muito eu já não ouvia e, numa voz familiar e doce, percebi estas palavras que jamais esquecerei:

– Dorme em paz! ? pois o Espírito do Amor reina e governa e, acolhendo no teu apaixonado coração aquela que se chama Hermengarda, tu és absolvido, por motivos que só no céu serão explicados, dos juramentos que fizeste a Leonor!





Berenice

Berenice

3280 palavras (±10 minutos de leitura)

Desgraça é variada. O infortúnio da terra é multiforme. Estendendo-se pelo vasto horizonte, como o arco-íris, suas cores são como as deste, variadas, distintas e, contudo, intimamente misturadas. Estendendo-se pelo vasto horizonte, como o arco-íris! Como é que, da beleza, derivei eu um exemplo de feiura? Da aliança da paz, um símile de tristeza? Mas é que, assim como na ética o mal é uma conseqüência do bem, igualmente, na realidade, da alegria nasce a tristeza. Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje, ou as agonias que existem agora têm sua origem nos êxtases que podiam ter existido

Meu nome de batismo é Egeu; o de minha família não o mencionarei. E, no entanto, não há torres no país mais vetustas do que as salas cinzentas e melancólicas do solar de meus avós. Nossa estirpe tem sido chamada uma raça de visionários. Em muitos pormenores notáveis, no caráter da mansão familiar, nos afrescos do salão principal, nas tapeçarias dos dormitórios, nas cinzeladuras de algumas colunas da sala de armas, porém mais especialmente na galeria de pinturas antigas, no estilo da biblioteca, e, por fim, na natureza muito peculiar dos livros que ela continha, há mais que suficiente evidência a garantir minha assertiva.

As recordações de meus primeiros anos estão intimamente ligadas àquela sala e aos seus volumes, dos quais nada mais direi. Ali morreu minha mãe. Ali nasci. Mas é ocioso dizer que eu não havia vivido antes, que a alma não tem existência prévia. Vós negais isto? Não discutamos o assunto. Convencido eu mesmo, não procuro convencer. Há, porém, uma lembrança de forma aérea, de olhos espirituais e expressivos, de sons musicais embora tristes; uma lembrança que jamais será apagada; uma reminiscência parecida a uma sombra, vaga, variável, indefinida, instável; e tão parecida a uma sombra, também, que me vejo na impossibilidade de livrar-me dela enquanto a luz de minha razão existir.

Foi naquele quarto que nasci. Emergindo assim da longa noite daquilo que parecia mas não era, o nada, para logo cair nas mesmas regiões da terra das fadas, num palácio fantástico, nos estranhos domínios do pensamento monástico e da erudição, não é de estranhar que tenha eu lançado em torno de mim um olhar ardente e espantado, que tenha consumido minha infância nos livros e dissipado minha juventude em devaneios; mas é estranho que, com o correr dos anos, e tendo o apogeu da maturidade me encontrado ainda na mansão de meus pais; é maravilhoso que a inércia tenha tombado sobre as fontes da minha vida; é maravilhoso como total inversão se operou na natureza de meus pensamentos mais comuns. As realidades do mundo me afetavam como visões, e somente como visões, enquanto as loucas idéias da terra dos sonhos tornavam-se, por sua vez, não o estofo de minha existência cotidiana, mas, na realidade, a própria existência em si, completa e unicamente.

Berenice e eu éramos primos e crescemos juntos no solar paterno. Mas crescemos diferentemente: eu, de má saúde e mergulhado na minha melancolia, ela, ágil, graciosa e exuberante de energia; ela, entregue aos passeios pelas encostas da colina, eu, aos estudos no claustro. Eu, encerrado dentro do meu próprio coração e dedicado, de corpo e alma, à mais intensa e penosa meditação, ela, divagando descuidosa pela vida, sem pensar em sombras no seu caminho ou no vôo saliente das horas de asas lutulentas. Berenice! – invoco-lhe o nome – Berenice! – e das ruínas sombrias da memória repontam milhares de tumultuosas recordações ao som da invocação! Ah! bem viva tenho agora a sua imagem diante de mim, como nos velhos dias de sua jovialidade e alegria! Oh! deslumbrante, porém fantástica beleza! Oh! sílfide entre arbustos de Arnheim! Oh! náiade entre as suas fontes! E depois. . . depois tudo é mistério e horror, uma história que não deveria ser contada. Uma doença, uma fatal doença, soprou, como o simum, sobre seu corpo. E precisamente quando a contemplava, o espírito da metamorfose arrojou-se sobre ela invadindo-lhe a mente, os hábitos e o caráter e, da maneira mais sutil e terrível, perturbando-lhe a própria personalidade! Ah! o destruidor veio e se foi! E a vítima. . . onde estava ela? Não a conhecia. . . ou não mais a conhecia como Berenice!

Entre a numerosa série de males, acarretados por aquele fatal e primeiro que ocasionou uma revolução de tão horrível espécie no ser moral e físico de minha prima, pode-se mencionar como o mais aflitivo e obstinado em sua natureza, uma espécie de epilepsia, que, não raro, terminava em transe cataléptico, transe muito semelhante à morte efetiva e da qual despertava ela quase sempre duma maneira assustadoramente subitânea. Entrementes, minha própria doença – pois me fora dito que eu não poderia dar-lhe outro nome – minha própria doença aumentou e assumiu afinal um caráter de monomania, de forma nova e extraordinária, e a cada hora e momento crescia em vigor e por fim veio a adquirir sobre mim a mais incompreensível ascendência. Esta monomania, se devo assim chamá-la, consistia numa irritabilidade mórbida daquelas faculdades do espírito denominadas pela ciência metafísica "faculdades da atenção ". É mais que provável não me entenderem, mas temo, deveras, que me seja totalmente impossível transmitir à mente do comum dos leitores uma idéia adequada daquela nervosa INTENSIDADE DE ATENÇÃO com que, no meu caso, as faculdades meditativas (para evitar a linguagem técnica) se aplicavam e absorviam na contemplação dos mais vulgares objetos do mundo.

Meditar infatigavelmente longas horas, com a atenção voltada para alguma frase frívola, à margem de um livro ou no seu aspecto tipográfico; ficar absorto, durante a melhor parte dum dia de verão, na contemplação duma sombra extravagante, projetada obliquamente sobre a tapeçaria, ou sobre o soalho; perder uma noite inteira olhando a chama imóvel duma lâmpada, ou as brasas de um fogão; sonhar dias inteiros com o perfume de uma flor; repetir, monotonamente, alguma palavra comum, até que o som, à força da repetição freqüente, cessasse de representar ao espírito a menor idéia, qualquer que fosse; perder toda a noção de movimento ou de existência física, em virtude de uma absoluta quietação do corpo, prolongada e obstinadamente mantida – tais eram os mais comuns e menos perniciosos caprichos provocados por um estado de minhas faculdades mentais, não, de fato, absolutamente sem paralelo, mas certamente desafiando qualquer espécie de análise ou explicação.

Sejamos, porém, mais explícitos. A excessiva, ávida e mórbida atenção assim excitada por objetos, em sua própria natureza triviais, não deve ser confundida, a propósito, com aquela propensão ruminativa comum a toda a humanidade e, mais especialmente, do agrado das pessoas de imaginação ardente. Nem era tampouco, como se poderia a princípio supor, um estado extremo, ou um a exageração de tal propensão, mas primária e essencialmente distinta e diferente dela. Naquele caso, o sonhador ou entusiasta, estando interessado por um objeto, geralmente não trivial, perde imperceptivelmente de vista esse objeto através duma imensidade de deduções, e sugestões dele provindas, até que, chegando ao fim daquele sonho acordado, muitas vezes repleto de voluptuosidade, descobre estar o incitamentum, ou causa primeira de suas meditações, inteiramente esvanecido e esquecido. No meu caso, o ponto de partida era invariavelmente frívolo, embora assumisse, por força de minha visão doentia, uma importância irreal e refratada. Nenhuma ou poucas reflexões eram feitas e estas poucas voltavam, obstinadamente, ao objeto primitivo, como a um centro. As meditações nunca eram agradáveis, e, ao fim do devaneio, a causa primeira, longe de estar fora de vista, atingira aquele interesse sobrenaturalmente exagerado, que era a característica principal da doença. Em uma palavra, as faculdades da mente, mais particularmente exercitadas em mim, eram, como já disse antes, as da atenção ao passo que no sonhador-acordado são as especulativas.

Naquela época, os meus livros, se não contribuíam efetivamente para irritar a moléstia, participavam largamente, como é fácil perce-ber-se, pela sua natureza imaginativa e inconsequente, das qualidades características da própria doença. Bem me lembro, entre outros, do tratado do nobre italiano Coelius Secundus Curio 'De AMPLITUDINE BEATI REGNI DEI;" da grande obra de Santo Agostinho, "A CIDADE DE DEUS"; do "De CARNE CHRISTI", de Tertuliano, no qual a paradoxal sentença: MORTUS EST DEI FILIUS; CREDIBILE EST QUIA INEPTUM EST: ET SEPULTUS RESUR-REXIT; CERTUM EST QUIA IMPOSSIBiLE EST", absorveu meu tempo todo, durante semanas de laboriosa e infrutífera investigação.

Dessa forma, minha razão perturbada, no seu equilíbrio, por coisas simplesmente triviais, assemelhava-se àquele penhasco marítimo, de que fala Ptolomeu Hefestião, que resistia inabalável aos ataques da violência humana e ao furioso ataque das águas e dos ventos, mas tremia ao simples toque da flor chamada asfódelo. E embora a um pensador desatento possa parecer fora de dúvida que a alteração produzida pela lastimável moléstia no estado moral de Berenice fornecesse motivos vários para o exercício daquela intensa e anormal meditação, cuja natureza tive dificuldades em explicar, contudo tal não se deu absolutamente. Nos intervalos lúcidos de minha enfermidade, a desgraça que a feria me mortificava realmente, e me afetava fundamente o coração aquela ruína total de sua vida alegre e doce. Por isso não deixava de refletir muitas vezes, e amargamente, nas causas prodigiosas que tinham tão subitamente produzido modificações tão estranhas. Mas essas reflexões não participavam da idiossincrasia de minha doença, e eram as mesmas que teriam ocorrido, em idênticas circunstâncias, à massa ordinária dos homens. Fiel a seu próprio caráter, minha desordem mental preocupava-se com as menos importantes, porém mais chocantes mudanças, operadas na constituição física de Berenice, na estranha e verdadeiramente espantosa alteração de sua personalidade.

De modo algum, jamais a amara durante os dias mais brilhantes de sua incomparável beleza. Na estranha anomalia de minha existência, os sentimentos nunca me provinham do coração, e minhas paixões eram sempre do espírito. Através do crepúsculo matutino, entre as sombras estriadas da floresta, ao meio-dia, e no silêncio de minha biblioteca, à noite, esvoaçara ela diante de meus olhos e eu a contemplara, não como a viva e respirante Berenice, mas como a Berenice de um sonho; não como um ser da terra, terreno, mas como a abstração de tal ser; não como coisa para admirar, mas para analisar; não como um objeto de amor, mas como o tema da mais abstrusa, embora inconstante, especulação. E agora. . . agora eu estremecia na sua presença e empalidecia à sua aproximação; embora lamentando amargamente sua decadência, e sua desolada condição, lembrei-me de que ela me amava desde há muito e num momento fatal, falei-lhe em casamento.

Aproximava-se, enfim, o período de nossas núpcias quando, numa tarde de inverno, de um daqueles dias intempestivamente cálidos, sossegados e nevoentos, que são a alma do belo Alcíone, sentei-me no mais recôndito gabinete da biblioteca. Julgava estar sozinho, mas, erguendo a vista, divisei Berenice, em pé à minha frente.

Foi a minha própria imaginação excitada, ou a nevoenta influência da atmosfera, ou o crepúsculo impreciso do aposento, ou as cinzentas roupagens que lhe caiam em torno do corpo, que lhe deram aquele contorno indeciso e vacilante? Não sei dizê-lo. Ela não disse uma palavra e eu, por forma alguma, podia emitir uma só sílaba. Um gélido calafrio correu-me pelo corpo, uma sensação de intolerável ansiedade me oprimia, uma curiosidade devoradora invadiu-me a alma e, recostando-me na cadeira, permaneci por algum tempo imóvel e sem respirar, com os olhos fixos no seu vulto. Ai! sua magreza era excessiva e nenhum vestígio da criatura de outrora se vislumbrava numa linha sequer de suas formas. O meu olhar ardente pousou-se afinal em seu rosto.

A fronte era alta e muito pálida e de uma placidez singular. O cabelo, outrora negro, de azeviche, caía-lhe parcialmente sobre a testa e sombreava as fontes encovadas com numerosos anéis, agora dum amarelo vivo, discordando, pelo seu caráter fantástico, da melancolia reinante em suas feições. Os olhos, sem vida e sem brilho, pareciam estar desprovidos de pupilas, e desviei involuntariamente a vista de sua fixidez vítrea para contemplar-lhe os lábios delgados e contraídos. Entreabriram-se e, num sorriso bem significativo, os dentes da Berenice transformada se foram lentamente mostrando. Prouvera a Deus nunca os tivesse visto, ou que, tendo-os visto, tivesse morrido!

O batido duma porta me assustou e, erguendo a vista, vi que minha prima havia abandonado o aposento. Mas do aposento desordenado do meu cérebro não havia saído, ai de mim! e não queria sair, o espectro branco e horrível de seus dentes. Nem uma mancha se via em sua superfície, nem um matiz em seu esmalte, nem uma falha nas suas bordas, que aquele breve tempo de seu sorriso não me houvesse gravado na memória. Via-os agora, mesmo mais distintamente do que os vira antes. Os dentes!. . – Os dentes! Estavam aqui e ali e por toda a parte, visíveis, palpáveis, diante de mim. Compridos, estreitos e excessivamente brancos, com os pálidos lábios contraídos sobre eles, como no instante mesmo do seu primeiro e terrível crescimento. Então desencadeou-se a plena fúria de minha monomania e em vão lutei contra sua estranha e irresistível influência. Os múltiplos objetos do mundo exterior não me despertavam outro pensamento que não fosse o daqueles dentes, Queria-os com frenético desejo. Todos os assuntos e todos os interesses diversos foram absorvidos por aquela exclusiva contemplação. Eles. Somente eles estavam presentes aos olhos de meu espírito, e eles, na sua única individualidade, se tornaram a essência de minha vida mental. Via-os sob todos os aspectos. Revolvia-os em todas as suas peculiaridades. Meditava em sua conformação. Refletia na alteração de sua natureza. Estremecia ao atribuir-lhes, em imaginação, faculdades de sentimento e sensação e, mesmo quando desprovidos dos lábios, capacidade de expressão moral. Dizia-se, com razão, de Mademoiselle de Sallé; que tous ses pas êtaient des sentiments" e de Berenice, com mais séria razão acreditava "que toutes ses dents étaient des idées". Idées! Ah! esse foi o pensamento absurdo que me destruiu! Des idées! ah! eis porque eu os cobiçava tão loucamente! Sentia que somente a posse deles poderia restituir-me a paz, e devolver-me a razão.

E assim cerrou-se a noite em torno de mim. Vieram as trevas, demoraram, foram embora. E o dia raiou mais uma vez. E os nevoeiros de uma segunda noite de novo se adensavam em torno de mim. E eu ainda continuava sentado, imóvel, naquele quarto solitário, ainda mergulhado em minha meditação, ainda com o fantasma dos dentes, mantendo sua terrível ascendência sobre mim, a flutuar, com a mais viva e hedionda nitidez, entre as luzes e sombras mutáveis do aposento. Afinal, explodiu em meio de meus sonhos um grito de horror e de consternação, ao qual se seguiu, depois de uma pausa, o som de vozes aflitas, entremeadas de surdos lamentos de tristeza e pesar. Levantei-me e, escancarando uma das portas da biblioteca, vi, de pé, na antecâmara, uma criada, toda em lágrimas, que me disse que Berenice não mais. . – vivia! Fora tomada de um ataque epiléptico pela manhã e agora ao cair da noite, a cova estava pronta para receber seu morador e todos os preparativos do enterro estavam terminados.

Com o coração cheio de angústia, oprimido pelo temor, dirigi-me, com repugnância, para o quarto de dormir da defunta. Era um quarto vasto, muito escuro, e eu me chocava, a cada passo, com os preparativos do sepultamento. Os cortinados do leito, disse-me um criado, estavam fechados sobre o ataúde e naquele ataúde, acrescentou ele, em voz baixa, jazia tudo quanto restava de Berenice.

Quem, pois, me perguntou se eu não queria ver o corpo ?- Não vi moverem-se os lábios de ninguém; entretanto, a pergunta fora realmente feita e o eco das últimas sílabas ainda se arrastava pelo quarto. Era impossível resistir e, com uma sensação opressiva, dirigi-me a passos tardos para o leito. Ergui de manso as sombrias dobras das cortinas mas, deixando-as cair de novo, desceram elas sobre meus ombros e, separando-me do mundo dos vivos, me encerraram na mais estreita comunhão com a defunta.

Todo o ar do quarto respirava morte; mas o cheiro característico do ataúde me fazia mal e imaginava que um odor deletério se exalava já do cadáver. Teria dado mundos para escapar, para livrar-me da perniciosa influência mortuária, para respirar, uma vez ainda, o ar puro dos céus eternos. Mas, faleciam-me as forças para mover-me, meus joelhos tremiam e me sentia como que enraizado no solo, contemplando fixamente o rígido cadáver, estendido ao comprido, no caixão aberto.

Deus do céu! Seria possível? Ter-se-ia meu cérebro transviado? Ou o dedo da defunta se mexera no sudário que a envolvia? Tremendo de inexprimível terror, ergui lentamente os olhos para ver o rosto do cadáver. Haviam-lhe amarrado o queixo com um lenço, o qual, não sei como, se desatara. Os lábios lívidos se torciam numa espécie de sorriso, e, por entre sua moldura melancólica, os dentes de Berenice, brancos luzentes, terríveis, me fixavam ainda, com uma realidade demasiado vivida. Afastei-me convulsivamente do leito e sem pronunciar uma palavra, como louco, corri para fora daquele quarto de mistério, de horror e de morte.

Achei-me de novo sentado na biblioteca, e de novo ali estava só. Parecia-me que, havia pouco, despertara de um sonho confuso e agitado. Sabia que era então meia-noite e bem ciente estava de que, desde o pôr-do-sol, Berenice tinha sido enterrada. Mas, do que ocorrera durante esse tétrico intervalo, eu não tinha qualquer percepção positiva, ou pelo menos definida. Sua recordação, porém, estava repleta de horror, horror mais horrível porque impreciso, terror mais terrível porque ambíguo. Era uma página espantosa do registro de minha existência, toda escrita com sombrias, medonhas e ininteligíveis recordações. Tentava decifrá-la, mas em vão; e de vez em quando, como o espírito de um som evadido, parecia-me retinir nos ouvidos o grito agudo e lancinante de uma voz de mulher. Eu fizera alguma coisa; que era, porém? Interrogava-me em voz alta e os ecos do aposento me respondiam "Que era?"

Sobre a mesa, a meu lado, ardia uma lâmpada e, perto dela, estava uma caixinha. Não era de aspecto digno de nota e eu freqüentemente a vira antes, pois pertencia ao médico da família; mas, como viera ter ali, sobre minha mesa, e por que estremecia eu ao contemplá-la? Não valia a pena importar-me com tais coisas e meus olhos, por fim, caíram sobre as páginas abertas de um livro e sobre uma sentença nelas sublinhada. Eram as palavras singulares, porém simples, do poeta Ebn Zaiat: "Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas meas aliquantulum fore levatas'. Por que, então, ao lê-las, os cabelos de minha cabeça se eriçaram até a ponta, e o sangue de meu corpo se congelou nas veias?

Uma leve pancada soou na porta da biblioteca e, pálido como o habitante de um sepulcro, um criado entrou, na ponta dos pés. Sua fisionomia estava transtornada de pavor e ele me falou em voz trêmula, rouca e muito baixa. Que disse? Ouvi frases truncadas. Falou-me de um grito selvagem, que perturbara o silêncio da noite. da ocorrência dos moradores da casa. de uma busca do lugar de onde viera o som. E depois sua voz se tornou penetrantemente distinta, ao murmurar a respeito de um túmulo violado  de um corpo desfigurado, desamortalhado, mas ainda respirante, ainda pal-pitante, ainda vivo!

Apontou para minhas roupas; estavam sujas de barro e de coágulos de sangue. Eu nada falava e ele pegou-me levemente na mão; havia, gravadas nela, sinais de unhas humanas. Chamou-me a atenção para certo objeto encostado à parede, que contemplei por alguns minutos: era uma pá.

Com um grito, saltei para a mesa e agarrei a caixa que sobre ela jazia. Mas não pude arrombá-la; e, no meu tremor, ela deslizou de minhas mãos e caiu com força, quebrando-se em pedaços. E dela, com um som tintinante, rolaram vários instrumentos de cirurgia dentária, de mistura com trinta e duas coisas brancas, pequenas, como que de marfim, que se espalharam por todo o assoalho.